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Pondo agora de parte as aldrabices em volta da questão líbia, há uma questão que elas levantaram e que convém referir.
Parte da contestação ao voto da Marisa e do Miguel confunde uma resolução com um ponto dessa resolução. Quer isso aconteça deliberadamente, como forma desonesta de ataque, quer não traga consigo esse tipo de maquiavelismo, essa confusão é grave, acontece sobretudo na esquerda e, entre esta, numa certa esquerda, e radica numa conceção maniqueísta da política que tem estado na raiz do pior dos sectarismos.
Levada ao extremo, essa confusão faz com que haja a ideia de que qualquer proposta globalmente positiva deverá ser rejeitada pelos "puros" (o que equivale a dizer pelos "bons") se contiver algum ponto maculado com alguma espécie de impureza. Se a água do banho do bebé está suja, é para deitar fora de imediato e sem contemplações, e não só a água mas também o bebé e a banheira, porque também eles teriam ficado conspurcados pela sujidade.
O problema é que, assim, porque a pureza de uns é diferente da pureza de outros, nenhum acordo é possível. Para uns, a pureza obriga-os a fazer parar ditadores sanguinários seja por que meios for, ao passo que para outros os ditadores sanguinários devem ser deixados em paz porque não se pode intervir nunca nos assuntos dos outros povos, mesmo que os assuntos desses povos venham a ter, tarde ou cedo, um impacto direto nos assuntos dos nossos. Os puros, que na vida real nunca o são mas adoram enxamear caixas de comentários com as suas purezas contraditórias, não admitem nunca qualquer dilema moral. O mundo é a preto e branco, nem que para o ser seja necessário deturpar realidades e retocar fotografias. Não param para pensar que se calhar, ao deitarem a água e tudo o resto pela janela, poderão estar a matar o bebé. Ou não, consoante haja ou não haja alguém para o apanhar.
Mas no mundo real as coisas não são assim. Cada escolha tem consequências, nem todas visíveis no momento em que é preciso fazê-la. Cada escolha tem prós e tem contras. E quem quer tomar decisões com alguma espécie de seriedade, tem sempre, mas sempre, de pesar esses prós e contras. Decidir se o mais importante é acabar com a austeridade ou conservar a intocabilidade das opções ideológicas. Decidir se o congelamento das contas de um ditador que enriquece obscenamente à conta de um povo que massacra compensa ou não o ato de não se antepor obstáculos à eventualidade de outro organismo internacional tomar a decisão de impor uma zona de exclusão aérea. Decidir se é possível subir faseadamente o salário mínimo para diminuir a contestação à subida fazendo com que ela seja possível de todo, em vez de exigir tudo, já!
Para os puros, que na realidade nunca o são, estas respostas são todas fáceis. É tudo a preto e branco. Nunca há qualquer subtileza nem nenhum tom de cinzento. E como Miguel Portas e Marisa Matias tiveram o desplante de as achar difíceis e de querer tratá-las com subtileza, o que para os "puros" é um crime de lesa-pureza, toca a deitá-los também a eles fora, nem que para isso tenham de mentir, sem sequer se darem conta (ou sem quererem saber) que mentir também viola muitas purezas. Ou talvez achem que os fins justificam os meios. Também é coisa de "puros", essa.
Por mim, dispenso puros. Não só porque nunca o são, só se armam, mas principalmente porque são a raiz de males sem conta, dos quais a demagogia é só o menos mau.
Edgar Silva, o ex-padre madeirense que o PCP decidiu candidatar à Presidência da República, teve uma prestação lastimável no debate com Marisa Matias (que pode ser visto na íntegra na página de facebook desta última). E não me refiro a ter sido incapaz de dizer com clareza que a Coreia do Norte é uma ditadura, nem a lançar perguntas/provocações e depois estar constantemente a interromper Marisa Matias quando esta tentava responder-lhes. Refiro-me a ter mentido.
E mentiu sobre várias coisas, mas uma chamou-me particularmente a atenção porque eu há um par de anos tinha tido uma conversa rasgadinha com outro comunista (o qual, nestas últimas eleições, foi cabeça de lista num círculo eleitoral do centro do país) depois de ele ter vindo argumentar com a mesma mentira. A de que os eurodeputados do Bloco teriam aprovado a intervenção militar na Líbia.
Na altura pude contrapor à mentira ligações para o registo das votações. Infelizmente, o site do Parlamento Europeu — como o de outros parlamentos, aliás; estou a olhar para ti, AR — é um labirinto onde a sistematização da informação é na melhor das hipóteses altamente deficitária, encontrar seja o que for é um calvário e certa informação, como os votos individuais dos deputados, pura e simplesmente parece não existir. Infelizmente, também, o VoteWatch Europe, que tem essa informação individualizada, só disponibiliza livremente as votações da presente legislatura europeia e esta votação, que teve lugar em 2011, aconteceu na anterior. Para chegar à mais antiga, só pagando, o que não deixa de mostrar o estado em que está a UE e não deixa de ser um curioso conceito de responsabilização democrática: ela existe, mas só para quem tem bolsos fundos. Enfim. Resumindo e concluindo: não vos posso fornecer os links que queria mostrar. Coisa que, francamente, me aborrece muitíssimo enquanto cidadão europeu.
Mas, por causa da outra conversa, lembro-me bem dos factos.
A dita votação teve lugar no contexto da parte ingénua da Primavera Árabe, numa altura em que esta ainda era principalmente composta por contestação pacífica. Khadafi, na Líbia, foi o primeiro dos ditadores árabes a reprimir de uma forma realmente selvagem as manifestações que exigiam mudança, com violações graves dos direitos humanos mais elementares, e a resolução do Parlamento Europeu acontece num momento em que a oposição líbia estava apenas a começar a militarizar-se mas já havia largas dezenas de milhares de refugiados, em fuga da repressão e em situação periclitante no que respeita à capacidade de sobrevivência.
A resolução pode ser consultada aqui (vá lá, ainda é de acesso livre) e é o resultado da fusão de várias propostas de vários grupos políticos. Boa parte dela apoia, adota e adapta resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que pouco antes tinha decretado sanções contra o regime líbio, estabelece relações com a oposição líbia, põe em andamento plataformas de apoio humanitário, abre as portas a financiamentos a esse tipo de apoio, faz proclamações mais ou menos genéricas sobre a necessidade de respeitar os direitos humanos e as liberdades cívicas, etc. Mas tem um ponto problemático, o ponto 10, que abre as portas a uma intervenção militar, ainda que limitada. Textualmente:
Salienta que a UE e os seus Estados-Membros devem honrar o seu dever de protecção, de modo a salvar a população civil da Líbia de ataques armados em larga escala; assinala que nenhuma opção prevista na Carta das Nações Unidas pode, por conseguinte, ser descartada; solicita à Alta Representante e aos Estados-Membros que se mantenham disponíveis para uma decisão do CSNU sobre novas medidas, incluindo a possibilidade de uma zona de exclusão aérea destinada a impedir o regime de atacar a população civil; sublinha que as medidas adoptadas pela UE e pelos seus Estados-Membros devem ser conformes com um mandato das Nações Unidas e assentar numa coordenação com a Liga Árabe e a União Africana, incentivando ambas as organizações a conduzir os esforços internacionais;
Porque este ponto é problemático, ele foi alvo de uma votação à parte. Isto é, a resolução teve duas votações, uma geral e outra específica para o ponto 10. Caso a resolução tivesse sido aprovada mas este ponto chumbado, aquela ficaria sem este, permitindo pôr em prática tudo quanto tinha a ver com apoio humanitário, sanções, etc., mas excluindo-se a possibilidade de intervenção militar. Chumbando a resolução, chumbava-se tudo: intervenção militar, sim, mas também sanções, apoio humanitário, etc. Dizia-se a Kadhafi, na prática, "faz o que quiseres, nós lavamos daí as mãos, e os refugiados que morram no deserto, não queremos saber."
E foi precisamente isso o que o PCP fez: votou contra tanto na votação geral como na do ponto 10.
Foi dos muito poucos a fazê-lo, aliás. A votação final, que pode ser consultada aqui (tudo em código e num PDF... num PDF, caramba! Esta gente já terá ouvido falar em bases de dados? E numa novidade que há agora aí chamada hiperligações?) dificilmente podia ser mais clara: a resolução foi aprovada com 584 votos a favor, 18 votos contra e 18 abstenções. A votação do ponto 10 foi diferente, embora não muito: foi aprovado com 573 votos a favor, 24 contra e 25 abstenções. E entre estes 24 votos contra a possibilidade de intervir militarmente na Líbia contaram-se os votos de Miguel Portas e de Marisa Matias (Rui Tavares não votou contra, mas ele nessa altura já se tinha afastado do Bloco, portanto o voto dele só com manifesta má fé pode ser usado como arma de arremesso contra Marisa Matias).
Os que acusam o Bloco de ter aprovado a intervenção militar na Líbia, portanto, mentem. Edgar Silva, portanto, mentiu.
Ora, em política, grosso modo, mente-se por dois motivos: desonestidade ou fraqueza.
A pergunta que fica é, portanto, porque mentes tu, Edgar? Por desonestidade ou por fraqueza?
(Para mais informações aconselha-se a leitura deste texto, subscrito pelos dois eurodeputados do Bloco.
Adenda das 18:50: José Gusmão acabou de publicar no Facebook a seguinte imagem:
À falta de link para as votações individuais, que era o que realmente devia haver, já serve de comprovação.
Adenda das 15:15 do dia seguinte: a votação individualizada existe, afinal. Está aqui. Mais um PDF em código.)