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Edgar Silva, o ex-padre madeirense que o PCP decidiu candidatar à Presidência da República, teve uma prestação lastimável no debate com Marisa Matias (que pode ser visto na íntegra na página de facebook desta última). E não me refiro a ter sido incapaz de dizer com clareza que a Coreia do Norte é uma ditadura, nem a lançar perguntas/provocações e depois estar constantemente a interromper Marisa Matias quando esta tentava responder-lhes. Refiro-me a ter mentido.
E mentiu sobre várias coisas, mas uma chamou-me particularmente a atenção porque eu há um par de anos tinha tido uma conversa rasgadinha com outro comunista (o qual, nestas últimas eleições, foi cabeça de lista num círculo eleitoral do centro do país) depois de ele ter vindo argumentar com a mesma mentira. A de que os eurodeputados do Bloco teriam aprovado a intervenção militar na Líbia.
Na altura pude contrapor à mentira ligações para o registo das votações. Infelizmente, o site do Parlamento Europeu — como o de outros parlamentos, aliás; estou a olhar para ti, AR — é um labirinto onde a sistematização da informação é na melhor das hipóteses altamente deficitária, encontrar seja o que for é um calvário e certa informação, como os votos individuais dos deputados, pura e simplesmente parece não existir. Infelizmente, também, o VoteWatch Europe, que tem essa informação individualizada, só disponibiliza livremente as votações da presente legislatura europeia e esta votação, que teve lugar em 2011, aconteceu na anterior. Para chegar à mais antiga, só pagando, o que não deixa de mostrar o estado em que está a UE e não deixa de ser um curioso conceito de responsabilização democrática: ela existe, mas só para quem tem bolsos fundos. Enfim. Resumindo e concluindo: não vos posso fornecer os links que queria mostrar. Coisa que, francamente, me aborrece muitíssimo enquanto cidadão europeu.
Mas, por causa da outra conversa, lembro-me bem dos factos.
A dita votação teve lugar no contexto da parte ingénua da Primavera Árabe, numa altura em que esta ainda era principalmente composta por contestação pacífica. Khadafi, na Líbia, foi o primeiro dos ditadores árabes a reprimir de uma forma realmente selvagem as manifestações que exigiam mudança, com violações graves dos direitos humanos mais elementares, e a resolução do Parlamento Europeu acontece num momento em que a oposição líbia estava apenas a começar a militarizar-se mas já havia largas dezenas de milhares de refugiados, em fuga da repressão e em situação periclitante no que respeita à capacidade de sobrevivência.
A resolução pode ser consultada aqui (vá lá, ainda é de acesso livre) e é o resultado da fusão de várias propostas de vários grupos políticos. Boa parte dela apoia, adota e adapta resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que pouco antes tinha decretado sanções contra o regime líbio, estabelece relações com a oposição líbia, põe em andamento plataformas de apoio humanitário, abre as portas a financiamentos a esse tipo de apoio, faz proclamações mais ou menos genéricas sobre a necessidade de respeitar os direitos humanos e as liberdades cívicas, etc. Mas tem um ponto problemático, o ponto 10, que abre as portas a uma intervenção militar, ainda que limitada. Textualmente:
Salienta que a UE e os seus Estados-Membros devem honrar o seu dever de protecção, de modo a salvar a população civil da Líbia de ataques armados em larga escala; assinala que nenhuma opção prevista na Carta das Nações Unidas pode, por conseguinte, ser descartada; solicita à Alta Representante e aos Estados-Membros que se mantenham disponíveis para uma decisão do CSNU sobre novas medidas, incluindo a possibilidade de uma zona de exclusão aérea destinada a impedir o regime de atacar a população civil; sublinha que as medidas adoptadas pela UE e pelos seus Estados-Membros devem ser conformes com um mandato das Nações Unidas e assentar numa coordenação com a Liga Árabe e a União Africana, incentivando ambas as organizações a conduzir os esforços internacionais;
Porque este ponto é problemático, ele foi alvo de uma votação à parte. Isto é, a resolução teve duas votações, uma geral e outra específica para o ponto 10. Caso a resolução tivesse sido aprovada mas este ponto chumbado, aquela ficaria sem este, permitindo pôr em prática tudo quanto tinha a ver com apoio humanitário, sanções, etc., mas excluindo-se a possibilidade de intervenção militar. Chumbando a resolução, chumbava-se tudo: intervenção militar, sim, mas também sanções, apoio humanitário, etc. Dizia-se a Kadhafi, na prática, "faz o que quiseres, nós lavamos daí as mãos, e os refugiados que morram no deserto, não queremos saber."
E foi precisamente isso o que o PCP fez: votou contra tanto na votação geral como na do ponto 10.
Foi dos muito poucos a fazê-lo, aliás. A votação final, que pode ser consultada aqui (tudo em código e num PDF... num PDF, caramba! Esta gente já terá ouvido falar em bases de dados? E numa novidade que há agora aí chamada hiperligações?) dificilmente podia ser mais clara: a resolução foi aprovada com 584 votos a favor, 18 votos contra e 18 abstenções. A votação do ponto 10 foi diferente, embora não muito: foi aprovado com 573 votos a favor, 24 contra e 25 abstenções. E entre estes 24 votos contra a possibilidade de intervir militarmente na Líbia contaram-se os votos de Miguel Portas e de Marisa Matias (Rui Tavares não votou contra, mas ele nessa altura já se tinha afastado do Bloco, portanto o voto dele só com manifesta má fé pode ser usado como arma de arremesso contra Marisa Matias).
Os que acusam o Bloco de ter aprovado a intervenção militar na Líbia, portanto, mentem. Edgar Silva, portanto, mentiu.
Ora, em política, grosso modo, mente-se por dois motivos: desonestidade ou fraqueza.
A pergunta que fica é, portanto, porque mentes tu, Edgar? Por desonestidade ou por fraqueza?
(Para mais informações aconselha-se a leitura deste texto, subscrito pelos dois eurodeputados do Bloco.
Adenda das 18:50: José Gusmão acabou de publicar no Facebook a seguinte imagem:
À falta de link para as votações individuais, que era o que realmente devia haver, já serve de comprovação.
Adenda das 15:15 do dia seguinte: a votação individualizada existe, afinal. Está aqui. Mais um PDF em código.)