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Anda aí um sururu dos diabos à volta das alterações no IMI. Não são alterações de monta: não criam nada de novo, não anulam nada que existia, limitam-se a ser alterações num par de números que já eram usados para calcular o IMI que cada um acaba por pagar, que tanto podem dar para agravar o imposto como para o desagravar, mas quem ouça o que se vai dizendo por aí facilmente imaginará que o Xerife de Nottingham desceu à cidade.
Mas e se parássemos para estudar o assunto primeiro e disparar depois? Eu sei que isso não é o padrão do faroeste, mas se calhar é mais inteligente agir assim do que engolir de isca e anzol a propaganda da direita que está aflita por levantar problemas com um dos pouquíssimos impostos sobre o património que existem em Portugal, e que ainda por cima sofreu alterações de monta este ano, alterações essas que irão beneficiar milhões de portugueses.
Então o que é que está agora em causa?
Está em causa uma alteração num coeficiente, que já existia nos tempos do governo do PSD/CDS, que inclui na avaliação do valor patrimonial dos edifícios aquilo a que se chama na lei a "qualidade e o conforto". Mas recuemos mais um pouco, e falemos de como se calcula o valor de IMI a pagar.
O IMI é uma taxa, fixa por cada município, sobre o "Valor Patrimonial Tributário" (VT) dos imóveis. Essa taxa pode variar mas não pode ultrapassar um máximo, que era de 0,5% do VT até este governo substituir o anterior e passou a 0,45% este ano. Ou seja, um prédio de 200 mil euros de valor tributário podia pagar até 1000 euros de IMI e agora poderá pagar até 900. As notícias sobre o "sol pagar imposto" não se referem a nada disto.
Como é que se calcula o VT? Bem, há uma fórmula. Ela é a seguinte:
VT = VC x A x Ca x Cl x Cq x Cv
Lembram-se das equações no secundário? É mais ou menos assim que esta funciona. VT é o valor tributário, VC é o valor base dos edifícios, A é a área que ocupam (construída ou não, desde que faça parte da "implantação", como eles lhe chamam), Ca é o coeficiente de afetação, Cl é o coeficiente de localização, Cq é o tal coeficiente de qualidade e conforto, e Cv é o coeficiente de vetustez. De tudo isto, a única coisa que muda agora é o coeficiente de qualidade e conforto; tudo o resto fica igual.
E chega agora a matemática do secundário. Se queremos saber como muda o valor tributário com as novas regras, basta-nos dividir a equação antiga pela nova. VT_a por VT_n, portanto, e também tudo o que está do outro lado da equação, claro. Mas atenção: VC, A, Ca, Cl e Cv não sofrem alterações; Só no Cq é que há um antigo e um novo, ou seja, um Cq_a e um Cq_n.
Vamos então a isso. A coisa fica assim:
VT_a / VT_n = ( VC x A x Ca x Cl x Cq_a x Cv ) / ( VC x A x Ca x Cl x Cq_n x Cv )
Ah, mas isto são tudo multiplicações e divisões. Pode-se fazer as operações por qualquer ordem. Ou seja, escrever o que está ali em cima é igual a escrever o seguinte:
VT_a / VT_n = (VC / VC) x (A / A) x (Ca / Ca) x (Cl / Cl) x (Cq_a / Cq_n) x (Cv / Cv)
E dividir um número por si próprio dá 1, não é? Então:
VT_a / VT_n = 1 x 1 x 1 x 1 x (Cq_a / Cq_n) x 1
E qualquer coisa multiplicada por um é ela própria, não é? Então:
VT_a / VT_n = Cq_a / Cq_n
Trocando as voltas a isto, fica que o novo valor, VT_n é igual a:
VT_n = Cq_n / Cq_a x VT_a
Muito bem. Isto mostra-nos a relação entre o antigo valor tributário e o novo, mas precisamos de saber como é que o coeficiente de qualidade e conforto muda. O que raio é o coeficiente de qualidade e conforto? Está explicado aqui, ainda com os valores antigos. Após a consulta a essa página, há algumas coisas importantes a reter:
1) O valor de Cq pode tomar valores entre um máximo de 1,7 e um mínimo de 0,5. Ou seja: pode servir para aumentar o VT em até 70% ou para reduzi-lo até metade. Com valores concretos, um VT que, sem esse coeficiente, fosse de 100 mil euros, com ele pode atingir um máximo de 170 mil euros e um mínimo de 50 mil euros. E isto não muda com a alteração que está agora nas bocas do mundo.
2) Para calcular o valor de Cq entra uma série de coisas, algumas que fazem aumentá-lo, outras que o fazem diminuir, e outras ainda que podem fazer tanto aumentar como diminuir. Isto também não muda com esta última alteração.
3) O valor final de Cq é obtido por soma e subtração à unidade dos termos que o compõem, até ao máximo e mínimo referidos em 1). Ou seja, 1 + uns quantos termos - outros quantos termos. Também isto não muda.
4) O que muda é o valor, máximo e mínimo, de um dos termos, que pretende medir a "localização e operacionalidade relativas". Este, que podia ter valores entre -0,05 e +0,05, passa agora a poder ter valores entre -0,1 e +0,2.
Muito bem: que consequências tem isto?
Agora, a melhor forma de mostrar é com exemplos.
Imaginemos uma propriedade que tinha tudo no máximo. Era uma moradia unifamiliar (+0,20), situada num condomínio fechado (+0,20), tinha garagem individual (+0,04), não tinha coletiva porque não faz grande sentido neste caso, portanto essa parcela cai fora, tinha duas piscinas, uma individual (+0,06) e uma coletiva (+0,03), um campo de ténis (+0,03), outros equipamentos de lazer (+0,04), alta qualidade construtiva (+0,15), uma localização excecional (+0,10), sistema central de climatização (+0,03), elevadores (+0,02) e uma excelente localização e operacionalidade relativas, o tal "sol que paga imposto" (+0,05). Somando isto tudo dá 1,95. Ops. Passa os 1,7, portanto fica em 1,7. Com as novas regras, estas contas são iguais, com a subida da última pacela de 0,05 para 0,2. O resultado é 2,10. OK, passa também o máximo; era 1,7, continua a ser 1,7. Resultado final: o VT não se altera, e o IMI também não, exceto por efeito da descida da taxa máxima.
Vejamos agora uma coisa ligeiramente mais modesta, sem se situar em condomínio fechado e sem piscina coletiva. Imaginemos também que a localização não é excecional. O resto é igual. Saltam 0,20, 0,03 e 0,10 dos totais, ou seja, 0,33. Dantes, o valor de Cq era 1,95 (ou seria, sem o máximo), agora passa para 1,95 - 0,33 = 1,62. Ah. Este é abaixo do máximo. E com as novas regras? 1,77. Passa o máximo, portanto fica em 1,7. Neste caso, o VT aumenta. O novo VT (VT_n) fica:
VT_n = 1,7 / 1,62 x VT_a = 1,0494 VT_a
Isto é, o valor tributário aumenta menos de 5%. Uma propriedade que antes era avaliada para efeitos tributários em um milhão de euros passa a ser avaliada em 1 milhão, 49 mil e 400 euros. Num município com IMI a taxas intermédias, vai mesmo sofrer um agravamento no IMI. Num município com IMI a taxa máxima, o IMI que pagava antes era 5 mil euros, o IMI que paga agora é 4722 euros. Surpresa! Diminui.
Um cenário mais realista para a maioria das pessoas: uma moradia modesta, unifamiliar (+0,20; podia ser menos, mas deixemos no máximo) mas sem luxos. Tem todas as infraestruturas menos rede de gás (-0,02; estou a supor que a simples ligação de uma botija ao fogão não seja considerada "rede de gás", mas posso estar enganado), e está em bom estado de conservação. A qualidade da construção é razoável, mas não atinge o máximo (+0,07). A localização? Meh. Escapa (+0,05). Quanto à operacionalidade, vamos ver dois cenários: um em que é ótima e o outro em que é péssima. No primeiro cenário, o Cq atinge um valor de 1,35 segundo as regras antigas e 1,50 segundo as novas; no segundo cenário, o Cq atinge um valor de 1,25 segundo as regras antigas e 1,20 segundo as novas. Ou seja, no primeiro cenário o valor tributário varia assim:
VT_n = 1,50 / 1,35 x VT_a = 1,1111 VT_a
No segundo, varia assim:
VT_n = 1,20 / 1,25 x VT_a = 0,96 VT_a
Uma propriedade avaliada em 400 mil euros passa, portanto, no primeiro caso, a ser avaliada em 444 400 euros (subida de 11%) e, no segundo, em 384 mil euros. No primeiro caso, o valor de IMI a pagar sobe em todos os casos menos se o município tiver o IMI à taxa máxima, onde (curiosamente) fica exatamente igual graças à descida dessa taxa. No segundo caso, o valor de IMI a pagar baixa e, se o município tiver a taxa máxima, baixa significativamente, de 2000 euros para 1728. E note-se que ambos estes casos são extremos; no mundo real pode acontecer tudo entre um e o outro.
Gente razoavelmente pobre em casas unifamiliares próprias? Com menos de 11570 euros anuais de rendimento não interessa, porque essas pessoas passaram este ano a estar isentas de IMI. Mas imaginemos um remediado, com mais do que esses rendimentos e com uma casinha das antigas no campo ou na periferia das cidades. Luxos: zero. É unifamiliar, portanto há uma majoração por isso, mas não atingirá o máximo. Digamos, +0,1. A qualidade da construção é fraca, a localização também, portanto nada de majoração por aí. Chega-se lá por um caminho de terra batida (-0,03), não há rede de gás (-0,02) e há algumas áreas inferiores às regulamentares (-0,05). O estado de conservação é mauzinho mas não catastrófico. Digamos, -0,02. Pode ter uma vista magnífica e ar puro (1º cenário), mas também pode estar ao lado duma ETAR, ter a casa do vizinho na frente e uma fábrica barulhenta ao lado (2º cenário). Contas. No primeiro cenário, o Cq pode chegar a um máximo de 1,03 segundo as regras antigas e de 1,18 segundo as novas. No segundo, pode descer até 0,93 segundo as regras antigas e a 0,88 segundo as novas. Os valores tributários respetivos alteram-se assim no primeiro cenário:
VT_n = 1,18 / 1,03 x VT_a = 1,1456 VT_a
E no segundo cenário:
VT_n = 0,88 / 0,93 x VT_a = 0,9462 VT_a
Ou seja, uma propriedade destas avaliada em 100 mil euros passa a valer para efeitos tributários 114 560 € no primeiro cenário e 94 620 € no segundo. Neste caso, o fator vista / sol leva a um aumento em todas as situações, mesmo quando a taxa de IMI é máxima (pelo menos quando ele próprio é levado ao máximo, ou perto), que pode chegar a perto de 15%. Em situações de más condições ambientais, o IMI baixa. Isto é, neste caso, o IMI a pagar tanto pode subir cerca de 15% como baixar mais de 5%.
Mas a maior parte dos portugueses provavelmente viverá em apartamentos. Para simplificar as contas, pensemos num prédio já com algumas décadas, sem garagem, mediano mas com todas as infraestruturas, sem grandes problemas de conservação, etc. Ou seja: um prédio em que todos os coeficientes sejam zero, exceto o que diz respeito à "localização e operacionalidade relativas". Imaginemos um prédio alto, em que o vizinho do último andar tem uma vista desobstruída pela cidade e desfruta de uns pores-do-sol espetaculares, ao passo que o desgraçado do rés-do-chão só apanha com o chinfrim e a poluição da rua e nunca tem sol em casa porque a rua é estreita e há prédios e árvores a obstruí-lo. Imaginemos que isto é mesmo extremo, pondo os coeficientes no máximo. Assim, o Cq do vizinho de cima será, segundo as regras antigas, 1,05 e, segundo as novas, 1,20, e o do vizinho de baixo será, segundo as regras antigas, 0,95 e, segundo as novas, 0,90. Não vale a pena fazer o resto das contas: os valores são muito semelhantes aos do caso anterior. O vizinho de cima vê o IMI agravado, mesmo nos casos de taxa máxima, o de baixo poupa no IMI. Os vizinhos que vivem entre um e o outro terão variações intermédias.
Para concluir
A alteração tem aspetos problemáticos. É problemático, por exemplo, que esta alteração vá ter um impacto percentual maior sobre os edifícios de valor patrimonial mais baixo do que sobre os que o têm mais alto, recaindo sobretudo sobre aquelas pessoas com rendimentos razoavelmente baixos, que portanto não dão para comprar casas muito boas, e também é problemático que o agravamento por condições excecionais suba de 0,05 para 0,20, ao passo que o desconto por más só aumente de 0,05 para 0,10.
Por outro lado, estas alterações não são automáticas, exceto para as casas novas: dependem de pedidos de reavaliação, que podem ser feitos pelos proprietários ou pelas autarquias. As autarquias raramente fazem estes pedidos, porque quem as governa quer ganhar as eleições seguintes e andar a fazer pedidos de reavaliação dos imóveis dos munícipes para fazer subir o IMI é meio caminho andado para as perder. Pode acontecer, mas não é provável. E os proprietários certamente não farão esses pedidos se as simulações derem como resultado que irão pagar uma taxa agravada de IMI. Ou seja: embora a maior parte dos casos teóricos deem como resultado uma subida do IMI a pagar, na prática é mais provável que só os proprietários que beneficiarem de reduções acabem por pedir a reavaliação das casas, o que significa uma redução do imposto arrecadado.
É, portanto, mentira a maior parte do que se anda por aí a dizer. É mentira que o imposto vá subir, porque tanto pode subir como descer e, olhando objetivamente o problema, é mais provável que desça, é mentira que as subidas máximas atinjam os 20%, como o telejornal da RTP propalou ontem, porque não deverão ultrapassar os 15%, é mentira que isto seja novo, que as condições de vista e luminosidade comecem agora a "pagar imposto", porque a alteração que colocou esses fatores em jogo se deu em 2006 (ver aqui; atenção às datas).
E também não é propriamente a coisa mais construtiva do mundo começar-se a esmiuçar todos os problemas do IMI a propósito deste assunto. Sim, eles são muitos, das múltiplas isenções a tudo e um par de botas à subjetividade de muitas avaliações, passando por coisas tão comezinhas como o desconto no IMI pelo mau estado de conservação poder servir de desincentivo para os proprietários fazerem obras, ou até pela concorrência fiscal que a existência de taxas diferentes do imposto nas várias autarquias tende a originar. Sim, se calhar devia-se mesmo estudar a questão a fundo e alterar profundamente as regras. Mas não é durante momentos de histeria demagógica, como o que a direita pretende instalar, que se pode pensar racionalmente os problemas. Não é agora que isso se deve fazer. Agora é hora de falar a verdade sobre as alterações que o imposto sofreu este ano, não só esta mas também as restantes. E, já agora, explicar como raio tudo isto funciona.
Foi o que tentei aqui fazer. Julgo não ter cometido nenhum erro, mas há sempre essa possibilidade.